segunda-feira, 5 de julho de 2004

Cara Inês,

Ainda bem que tens uma carreira de sucesso. Ainda bem que tiraste um curso e conseguiste colocação no ensino. Fico contente por seres uma pessoa que se esforça, que chega a horas ao emprego, que estuda ainda mais para subir um pouco mais. Ainda bem que tens carro e carta de condução. Ainda bem que lês muito e podes comprar mais livros sem fim. Ainda bem que és iluminada. Mas em verdade te digo (olha, bíblico – saiu), o que se passou nestes últimos dias ultrapassa todas as moléculas que compõem esse teu ego de merda. Sinceramente: tens um “egozinho” que dá pena. Se acaso tivesses visto pessoas que trabalham em condições miseráveis. Se acaso tivesses visto pessoas que não recebem um belo salário de professor, pago religiosamente ao dia 22, mas sim um mísero salário mínimo, quantas vezes atrasado. E têm filhos, criam filhos, cuidam deles, e não podem ler porque não sabem, ou não têm tempo, ou não podem. Porque o calor na fábrica, na oficina, é mais intenso do que um belo livro de Zola. Porque os transportes são caros e raros e desconfortáveis. Porque a puta da vida lhes cobra facturas impagáveis. Porque respiram uma natureza condenada ao jugo dos políticos, ao cinismo dos intelectuais, essa inteligentíssima classe. Porque desesperam por uma receita médica e nem sabem de cor a merda do nome dos comprimidos que tomam, não porque tenham uma enxaqueca, uma dor de tanto lerem e escreverem mas sim porque respiram diluentes, apanham reumatismos e contraem tendinites nas linhas de montagem. Soubesses tu o que é essa gente, quem é essa gente e, por certo, não estarias aí, de papo emproado, a proclamar “eunãodizias”, essas tretas fidalgas e canhestras provenientes de quem, julgando-se superior, nunca provou o verdadeiro sal da vida, o suor a escorrer num rosto sem esperança.
O mínimo que eu te posso pedir, cara Inês, é que respeites o sonho de um povo

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