quinta-feira, 28 de outubro de 2004

ficções

Marília entrou naquele instante. Todos a olharam indecentemente. Aquela mulher acabara de iniciar um frente a frente com o tribunal da aldeia. Deixara o marido, o companheiro de 25 anos de uma vida cheia de misérias escondidas, um homem de prestígio e muito importante.
Católico praticante e sempre impecavelmente presente nos momentos mais importantes da comunidade, Artur, médico, daqueles médicos que até levam pouco ou quase nada por tratarem dos mais pobres, só não era presidente de qualquer coisa importante porque gostava de vestir o fato de benemérito. Adorava ser tratado como “ o Sr. Doutor dos pobres”.
Marília era a única pessoa no mundo que pensava diferente. E sabia disso quando entrou naquele café e olhou a pequena multidão de inquisidores. Eles não entendem como é possível um homem como o Artur ter sido abandonado pela mulher, pela mãe dos seus filhos. Eles não admitem como é possível a uma mulher como Marília deitar-se na cama com um amante.
Marília pediu um café, como sempre, e, como sempre, sem açúcar. Puta, ouviu-se ao fundo. Marília sorriu, quase sem vergonha porque achava impossível não ter ouvido aquele nome. Estava ciente de que ali não valia nada e apenas se deixava ficar com os seus pensamentos. Ninguém iria perceber que Marília era uma mulher. Ninguém queria saber disso, ela era mulher enquanto esposa de um homem de bem. Aparte isso, era nada. Acima disso só podia ser puta.
Cinquenta cêntimos pelo café sem açúcar e três ou quatro palavrões. Era um preço justo pelo prazer da cafeína e pela satisfação de voltar a ser mulher.

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