O que é que foste lá fazer? Fui Apanhar Morangos!




I
Naquele ano, eu e o Carlos
tivemos uma ideia ainda mais arrojada do que a que tivéramos no ano anterior.
No ano anterior deu-nos para ir à boleia até ao Algarve num camião do horto
vizinho da Quinta da Pena, onde o Carlos morava, mas a coisa não tinha de ser
feita por ali, graças a uns ditos e não ditos do motorista e então comprámos
uns passes da CP que tinha uns “dias verdes” com preços muito reduzidos e lá
fomos nós ao Algarve, de comboio e a jogar xadrez, coisa que fizemos durante
toda a aventura no Sul e que, para bem da verdade, eu ganhei por 13 a 12,
renhido, portanto. Essa viagem tem quase nada para contar, se tirarmos as favas
com toucinho da tia Vitorina e uma forte gripe do Carlos, misturados com a
beleza intrínseca das terras algarvias, quer na costa quer na serra - ainda
guardo comigo a impressionante imagem da praia de Monte Gordo quase sem betão.
Um aparte a registar é que nós
tínhamos como primeiro objetivo ir ter com os finalistas do Liceu que estavam
algures em Quarteira. E demos com eles, sim senhor, ali enfiados nuns
apartamentos muito pequenos e cheios de moços e moças meio perdidos e muito
preocupados com o acne e o champô para a caspa. De modos que abalámos dali a
correr e fomos para Nexe, ter com a tia do Carlos, a Dona Vitorina, que nos
recebeu de braços abertos. E daí vieram as favas com chouriça mais saborosas de
toda a minha vida, e um lacrau apanhado sabiamente pelo tio do Carlos que mo
ofereceu colocando-o num frasco cheio de álcool, e que me acompanhou anos a fio
até o ter perdido numa das minhas mudanças por via de ter passado à condição de
nómada entre os 20 e os 22 anos. E, portanto, aquela ideia tinha sido boa, mas
nada a ver com ideia que tivemos nesse ano de 1985.
Ora, eu e o Carlos tínhamos um
belo hábito que consistia em pormo-nos à boleia nos Carvalhos, com direção ao
Porto, mais concretamente à Biblioteca Municipal, em São Lázaro, onde nos
regalávamos a ler, eu Sartre e ele Camus, pelo que me lembra, e depois, no
final da tarde, íamos à pastelaria Abreu no Campo 24 de Agosto enfardar um
gigante pastel mil folhas. E nessas andanças conversávamos muito, ora de
futebol, ora de política, ora de sonhos. O sonho dele era África, o meu era
Paris e se calhar por isso também ele apreciava mais um escritor argelino e eu
um francês de Paris, ora pois.
Um belo dia, ele sai-me com
esta “sabes que no Consulado Britânico há um livro com instruções de como nos
devemos inscrever para ir apanhar morangos para Inglaterra? Podíamos ir lá ver
isso!”. Poder, podíamos, claro que podíamos, mas entre isso e ir para
Inglaterra apanhar morangos ia uma distância muito grande. E então lá fomos nó
ao tal British Council, na Rua do Breiner, uma transversal da Rua de Cedofeita.
Pedimos à senhora funcionária
que nos mostrasse o tal livrinho e fomos tomando notas: Os passos a dar eram
simples: para além do passaporte, tínhamos de ter 80 libras para entrar no UK,
e um “permit” que seria obtido se nós escrevêssemos uma carta aos donos da
quinta de morangos lá longe em “Tunstead” e eles nos respondessem que sim, que
éramos elegíveis para o programa conjunto com o Instituto Britânico, que
consistia em nós darmos mão de obra quase grátis e eles darem-nos a
possibilidade de «viver uma experiência única de aprendizagem da língua
inglesa».
E lá começamos nós a tratar
das coisas para a nossa empreitada.
II
Aquelas andanças deram-se por
meados de fevereiro. Nós os dois, eu e o Carlos, vestindo cada um sua camisola
de lã grossa em tons de castanho e bege que tínhamos comprado na Ribeira do
Porto, numa loja de produtos regionais, - pareciam dois irmãos! - com
umas golas grossas, “à camões”, que nos faziam comichão até ficarem bem coçadas
e que nos salvavam daquelas manhãs frias de fevereiro, o nosso mês, o dos gatos
e dos peixes, que era o que nós éramos.
E nós os dois a fazer planos.
Nós os dois a dar voltas na escola e à cabeça, duas centelhas brilhantes a
fazer equações, a tirar medidas quais carpinteiros de viagens.
Nós os dois.
E dinheiro? Arranja-se,
vamos trabalhar, fazemos qualquer coisa, eu consigo arranjar algum dinheiro a
apanhar pratos do "Tiro aos Pratos" que caem lá no campo da quinta,
dizia o Carlos muito optimista. E o transporte? Vamos à boleia. De camião TIR,
atirava o Carlos. Aquele moço tinha remédio para tudo, sempre foi assim e quem
o conhece sabe bem que eu não estou a exagerar nem um bocadinho.
Olha, até parecia fácil. Para
cada pergunta uma resposta pronta, para cada barreira, um salto, para cada
parede, uma porta escancarada. Estávamos seguros, embriagados até, de que
aquilo se fazia, e pois então, desatámos a organizar as coisas, e de um modo
muito especial, até porque um era existencialista e o outro anarquista
militante. Ai Jesus, o que se falou, o que se teorizou. Tudo estava claro!
Não pensem, porém, que estão
perante dois putos burgueses com a mania de que tudo aquilo era nestum e
cerelac! Desengane-se quem pensa que lá em casa tudo se resolvia com um simples
“Olhem, pai e mãe, estava a pensar viajar para Inglaterra no verão, para
aprender inglês e preciso de dinheiro” e já estava. Não, amigos. Nós não éramos
definitivamente esse tipo de famílias. Pelo menos eu. E aqui chegado, falo no
que a este tripulante diz respeito.
Literalmente, eu não tinha um
tusto! Até porque a mim competia-me sempre ser eu a usar dinheiro para comprar
coisas do género pasta de dentes, por exemplo, sabonete e champô entre outras
coisas essenciais como roupa e sapatos, estão a ver? Eu era o gestor dos meus
zero recursos, não sei se estão a ver.
É que ninguém usava dinheiro
por mim! Ninguém comprava coisas para mim! Eu tinha de comprar tudo aquilo que
normalmente as pessoas da minha idade têm em casa e não são eles a comprar. Na
minha casa só havia água e sabão. Na minha casa não havia ninguém que dissesse
“olha, precisas de um par de sapatilhas” ou “vai à despensa e pega no que
quiseres”. Não havia nada disso, nem disso nem pessoas dessas.
Na verdade, não havia casa.
Nem eira nem beira. Nem ninguém, apenas funcionários e companheiros do mesmo
fado.
É que, talvez vocês não
saibam, eu era um rapaz institucionalizado! Uns bons anos antes, ainda antes de
"Abril" e do Carlos Lopes ter ganho a medalha de Prata em Helsínquia,
eu tinha sido entregue a uma Instituição do Estado porque qualquer coisa estava
a correr mal lá na minha casa da minha aldeia, onde eu tinha uma casa e tinha
gente que ia comprar coisas para mim e que ia dar-me roupa para vestir,
iogurtes com sorte, e tulicreme com muita sorte.
Ora bem, eu vivia então num
Colégio onde me era garantido cama, mesa e roupa lavada. Quer dizer, havia
roupa, mas era uma roupa de institucionalizado que ninguém quer, muito menos um
institucionalizado! Portanto a verdadeira roupa era a que se arranjava,
umas lois usadas, umas sapatilhas "à márcio", isso sim, era todo um
outro nível. Já a mesa era frugal, o essencial, pois claro, mas um jovem
nessas alturas não quer saber se come bife, desde que não tenha fome. E
ninguém tinha fome.
E depois fui crescendo, e
depois vi a medalha de Ouro do Carlos Lopes em Los Angeles e já tinha os meus
pequenos vícios, um cafezinho, uma cerveja com os amigos, uma ida ao cinema,
essas coisas. Também me garantiam estudar e desfrutar dos tempos mais belos da
nossa existência, os tempos do Liceu, das descobertas, das namoradas e dos
momentos de convívio, da Vila Faia e dos Jogos Sem Fronteiras. Podíamos sair e
andar por aí e a cada um competia as suas escolhas.
Ora, tudo isso tinha de
ser suportado por mim com dinheiro ganho por mim e administrado por mim. De
modos que para realizar tão grande empreitada eu fazia-me valer de alguns
recursos. Dava explicações a uns cachopos dos Carvalhos, ia à Feira da Vandoma
do Porto vender umas coisas velhas que ia arranjando lá na instituição. Muitas
vezes já fazia negócios de compra e venda de pequenos bens como roupas e
candeeiros feitos com garrafas e com pequenos troncos de sobreiro, canecas de
barro que por ali apareciam feitas por outros miúdos nas aulas de “trabalhos
manuais”, enfim que um institucionalizado é em primeiro lugar um desenrascado.
Depois pode ser outras coisas. E a um desenrascado compete-lhe dar a volta,
encontrar soluções ou inventá-las.
E assim, desta maneira, lá ia
eu arranjando dinheiro para ser digno de ir ao “Sala Bebé” ver o Paris Texas,
lá ia tendo uns trocos para não fazer figura de pobre indigente ao pé dos
amigos, para comprar giletes, desodorizantes. Eu era feliz assim e ia andando
direito e atinado. Ter dinheiro para uma expedição a Inglaterra, ainda por cima
ter de arranjar oitenta libras e um passaporte que era caríssimo e um saco-cama
e uma mochila e roupas de viagem e dinheiro no bolso para as despesas normais e
essenciais de quem viaja, bom, isso era coisa impossível, mas a cuja
impossibilidade eu ia dar importância nenhuma porque estava decidido. Estava
completamente vidrado na ideia de ir, de dar esse passo, desse para o que
desse.