domingo, 13 de julho de 2025

 13 de julho de 1985. Dia do "Live Aid" e dia da minha chegada a Londres -

O que é que foste lá fazer? Fui Apanhar Morangos!

🍓🍓🍓🍓
Quarenta anos!


I

Naquele ano, eu e o Carlos tivemos uma ideia ainda mais arrojada do que a que tivéramos no ano anterior. No ano anterior deu-nos para ir à boleia até ao Algarve num camião do horto vizinho da Quinta da Pena, onde o Carlos morava, mas a coisa não tinha de ser feita por ali, graças a uns ditos e não ditos do motorista e então comprámos uns passes da CP que tinha uns “dias verdes” com preços muito reduzidos e lá fomos nós ao Algarve, de comboio e a jogar xadrez, coisa que fizemos durante toda a aventura no Sul e que, para bem da verdade, eu ganhei por 13 a 12, renhido, portanto. Essa viagem tem quase nada para contar, se tirarmos as favas com toucinho da tia Vitorina e uma forte gripe do Carlos, misturados com a beleza intrínseca das terras algarvias, quer na costa quer na serra - ainda guardo comigo a impressionante imagem da praia de Monte Gordo quase sem betão.

Um aparte a registar é que nós tínhamos como primeiro objetivo ir ter com os finalistas do Liceu que estavam algures em Quarteira. E demos com eles, sim senhor, ali enfiados nuns apartamentos muito pequenos e cheios de moços e moças meio perdidos e muito preocupados com o acne e o champô para a caspa. De modos que abalámos dali a correr e fomos para Nexe, ter com a tia do Carlos, a Dona Vitorina, que nos recebeu de braços abertos. E daí vieram as favas com chouriça mais saborosas de toda a minha vida, e um lacrau apanhado sabiamente pelo tio do Carlos que mo ofereceu colocando-o num frasco cheio de álcool, e que me acompanhou anos a fio até o ter perdido numa das minhas mudanças por via de ter passado à condição de nómada entre os 20 e os 22 anos. E, portanto, aquela ideia tinha sido boa, mas nada a ver com ideia que tivemos nesse ano de 1985.

Ora, eu e o Carlos tínhamos um belo hábito que consistia em pormo-nos à boleia nos Carvalhos, com direção ao Porto, mais concretamente à Biblioteca Municipal, em São Lázaro, onde nos regalávamos a ler, eu Sartre e ele Camus, pelo que me lembra, e depois, no final da tarde, íamos à pastelaria Abreu no Campo 24 de Agosto enfardar um gigante pastel mil folhas. E nessas andanças conversávamos muito, ora de futebol, ora de política, ora de sonhos. O sonho dele era África, o meu era Paris e se calhar por isso também ele apreciava mais um escritor argelino e eu um francês de Paris, ora pois.

Um belo dia, ele sai-me com esta “sabes que no Consulado Britânico há um livro com instruções de como nos devemos inscrever para ir apanhar morangos para Inglaterra? Podíamos ir lá ver isso!”. Poder, podíamos, claro que podíamos, mas entre isso e ir para Inglaterra apanhar morangos ia uma distância muito grande. E então lá fomos nó ao tal British Council, na Rua do Breiner, uma transversal da Rua de Cedofeita.

Pedimos à senhora funcionária que nos mostrasse o tal livrinho e fomos tomando notas: Os passos a dar eram simples: para além do passaporte, tínhamos de ter 80 libras para entrar no UK, e um “permit” que seria obtido se nós escrevêssemos uma carta aos donos da quinta de morangos lá longe em “Tunstead” e eles nos respondessem que sim, que éramos elegíveis para o programa conjunto com o Instituto Britânico, que consistia em nós darmos mão de obra quase grátis e eles darem-nos a possibilidade de «viver uma experiência única de aprendizagem da língua inglesa».

E lá começamos nós a tratar das coisas para a nossa empreitada.

II

 

 

Aquelas andanças deram-se por meados de fevereiro. Nós os dois, eu e o Carlos, vestindo cada um a sua camisola de lã grossa em tons de castanho e bege que tínhamos comprado na Ribeira do Porto numa loja de produtos regionais - pareciam dois irmãos! -  com umas golas grossas, “à camões”, que nos faziam comichão no pescoço e que nos salvavam daquelas manhãs frias de fevereiro, o nosso mês, o dos gatos e dos peixes, que era o que nós éramos.

E nós os dois a fazer planos. Nós os dois a dar voltas na escola e à cabeça, duas centelhas no Universo a fazer equações, a tirar medidas quais carpinteiros de viagens.

Nós os dois.

 E dinheiro? Arranja-se, vamos trabalhar, fazemos qualquer coisa, eu consigo arranjar algum dinheiro a apanhar pratos do "Tiro aos Pratos" que caem no campo da quinta, dizia o Carlos muito optimista. E o transporte? Vamos à boleia. De camião TIR, atirava ele com ainda mais optimismo. Aquele moço tinha remédio para tudo, principalmente daquele remédio que convence o mais cético. Foi sempre assim, o Carlos. Quando falava entusiasmado as veias do pescoço pareciam sair da pele como cabos de eletricidade e quem o conhece sabe bem que eu não estou a exagerar nem um bocadinho. 

Olha, até parecia fácil, dizia eu. Para cada pergunta uma resposta pronta, para cada barreira, um salto, para cada parede, uma porta escancarada. Nós estávamos seguros, embriagados até, de que aquilo se fazia, e pois então, desatámos a organizar as coisas, e de um modo muito especial, até porque um era existencialista e o outro anarquista militante, ambos humanistas, sem dúvida. Ai Jesus, o que se falou, o que se teorizou. Tudo estava claro! Nada nos ia parar.

Não pensem, porém, que estão perante dois putos burgueses com a mania de que tudo aquilo era nestum e cerelac! Desengane-se quem pensa que lá em casa tudo se resolvia com um simples “Olhem, pai e mãe, estava a pensar viajar para Inglaterra no verão, para aprender inglês e preciso de dinheiro” e já estava. Não, amigos. Nós não éramos definitivamente esse tipo de famílias. Pelo menos eu.  

Literalmente, eu não tinha um tusto! Até porque a mim competia-me sempre ser eu a usar dinheiro para comprar coisas do género pasta de dentes, por exemplo, sabonete e champô, entre outras coisas essenciais, como roupa e sapatos, estão a ver? Eu era o gestor dos meus zero recursos, tenho dúvidas se estão a ver, palavra de honra!

É que ninguém usava dinheiro por mim! Ninguém comprava coisas para mim! Eu tinha de comprar tudo aquilo que normalmente as pessoas da minha idade têm em casa e não são eles a comprar. Na minha casa só havia água e sabão para a higiene. Na minha casa não havia ninguém que dissesse “olha, precisas de um champô e amaciador para afagar os teus lindos caracóis cor de trigo maduro” ou “vai à despensa e pega no que quiseres mas não exageres nas doçarias”. Não havia nada disso, nem disso nem pessoas dessas.

Na verdade, não havia nem casa, nem eira, nem beira. Nem ninguém, apenas funcionários e companheiros do mesmo fado. 

É que, talvez vocês não saibam, eu era um rapaz, digamos, institucionalizado! Uns bons anos antes, ainda antes do "vinte e cinco de abril" e do Carlos Lopes ter ganho a Medalha de Prata em Helsínquia, eu tinha sido entregue a uma Instituição do Estado porque qualquer coisa estava a correr mal lá na minha casa da minha aldeia, onde eu tinha uma casa e tinha gente que ia comprar coisas para mim e que ia dar-me roupa para vestir, iogurtes, com sorte, e tulicreme, com muita sorte, e que já não estava ali para mim.  

Ora bem, eu vivia então num Colégio onde me era garantido cama, mesa e roupa lavada. Quer dizer, havia roupa, mas era uma roupa de institucionalizado que ninguém quer, muito menos um institucionalizado! Portanto a verdadeira roupa era a que se arranjava fora dali, umas gangas da  "lois", usadas, umas sapatilhas "à márcio", isso sim, era todo um outro nível. Já a mesa era frugal, o essencial, pois claro, mas um jovem nessas alturas não quer saber se come bife ou não, desde que não tenha fome. E ninguém tinha fome ali, isso é verdade. 

E depois fui crescendo, fiz a comunhão e o padre Reinaldo deu-me uma fotografia onde estávamos todos "Ofereço esta fotografia ao Altino como prémio da Comunhão Solene" e eu ali na fotografia, russinho, coradinho, de mão unidas a rezar. Depois fiz  o exame da Quarta Classe e fui para o Ciclo Preparatório, desta feita para a Escola Padre António Luís Moreira, cá fora, ou seja, lá fora, fora da Instituição, com turmas reais de rapazes e raparigas, com professores simpáticos e antipáticos, o professor Tristão, de Francês, homem já maduro da velha guarda, mas muito competente a ensinar e que me deu naquele ano todas as bases necessárias para eu me transformar num craque em francês, para gostar do francês "Robert et Nicole Jouent au Balon avec Patapouf" e ao mesmo tempo para vir a ter, mais à frente, muitas dificuldades com o inglês.  E era já um jovenzinho e já tinha os meus pequenos vícios, um cafezinho, uma cerveja com os amigos, uma ida ao cinema, essas coisas. Depois fui para o Liceu, a Secundária que era ali ao lado, onde desfrutei dos tempos mais belos da nossa existência, os tempos do Liceu, das descobertas, das namoradas e dos momentos de convívio, da Vila Faia e dos Jogos Sem Fronteiras, dos vídeo clips, enfim, da Medalha de Ouro do Carlos Lopes, vejam bem esta evolução! 

Era já um tempo em que nós podíamos, é verdade, sair e andar por aí e a cada um competia as suas escolhas e, assim como assim, nem todos escolhiam bem. Um tempo em que descobri José Régio e os Trovante. Um tempo em que eu me sentia bem na vida, pelintra mas feliz.

 Ora, tudo isso, que não era pouco, tinha de ser custeado por mim, a expensas próprias, como se diz, com dinheiro ganho por mim e administrado por mim. De modos que para realizar fundos eu fazia-me valer de alguns recursos. Ora dava explicações a uns cachopos dos Carvalhos, ora ia à Feira da Vandoma do Porto vender umas coisas velhas que ia arranjando lá na instituição. Muitas vezes já fazia negócios de compra e venda de pequenos bens como roupas e candeeiros feitos com garrafas ou com pequenos troncos de sobreiro, canecas de barro que por ali apareciam feitas por outros miúdos nas aulas de “trabalhos manuais”, enfim, que um institucionalizado é em primeiro lugar um desenrascado. Depois pode ser outras coisas. E a um desenrascado compete-lhe dar a volta, encontrar soluções ou inventá-las.

E assim, desta maneira, lá ia eu arranjando dinheiro para ser digno de algumas trivialidades como ir ao “Sala Bebé” ver o Paris Texas, lá ia tendo uns trocos para não fazer figura de pobre indigente ao pé dos amigos e das miúdas, para comprar giletes, desodorizantes, entre tantas outras coisinhas essenciais à nossa primavera. 

Eu era feliz assim e ia andando direito e atinado. Agora, ter dinheiro para uma Expedição a Inglaterra, ainda por cima ter de arranjar oitenta libras e um passaporte que era caríssimo e um saco cama e uma mochila e roupas de viagem e dinheiro no bolso para as despesas normais e essenciais de quem viaja, bom, isso era coisa impossível, mas cuja impossibilidade eu ia dar importância nenhuma porque estava decidido. Estava completamente vidrado na ideia de ir, de dar esse passo, desse para o que desse.







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