terça-feira, 19 de junho de 2012

Era uma vez uma aldeia de subúrbio, com casas empilhadas entre ruas e vielas. Com pátios de cimento e terra, hortas e galinheiros, e um cão. Quase todas estas casas têm um cão, ora porque se gosta de animais, ora porque se gosta de ter a casa vigiada. E quase todas as pessoas destas casas têm vizinhos e se dão bem. Partilham coisas, recursos pequenos da horta, ou outras coisas que se traz do emprego, que se arranja. Umas madeiras, caixas, ou arame e pregos. Nas casas destas aldeias de subúrbio é normal ver-se muitas coisas que são ali botadas  porque servem para qualquer coisa, nem que seja para dar ao vizinho. E este dar e receber vive-se desde sempre, posto que os vizinhos se dêem, está claro.

E um dia, um vizinho teve ninhada de cães e quando se tem tantos cachorrinhos é normal que não se deitem fora. É normal que se dêem. Os vizinhos dão os seus cachorros, não os vendem. Outros há que acabam por deitar a afogar no rio as cadelinhas por via de uma espécie de "misoginia canina", que é uma coisa que tem tendência a acabar, graças a Deus.

Ora, e um dia um vizinho foi à casa da ninhada escolher um cão. E foi assim que começou a a ser traçada a vida do "Skyp". Ele foi o escolhido porque era o mais bonito da ninhada. Foi um critério de escolha muito razoável, acertado até. Quem não escolheria o cão mais bonito da ninhada se tivesse essa oportunidade?
E o cão deve ter percebido isso. Era o príncipe perfeito, o mais bonito e foi com vaidade que se viu no colo daquela mulher. Saiu do peito da mãe para os braços daquela que iria cuidar dele porque mereceu, porque tinha predicados convincentes e irrecusáveis. Quantos de nós nunca se sentiram assim? O escolhido de entre tantos outros.

Já passaram muitos anos sobre este momento de glória do Skyp e o único outro momento de glória deste  cachorrinho foi o dia em que fechou os olhos para sempre. Quase treze anos depois. Treze anos passados amarrado a uma jaula feita de meio bidão de fibra de vidro , um forno no verão e uma geladeira no inverno. O único brinquedo do Skyp era uma gamela de cimento, onde caía ali uma comida de lavagem. Nunca calcorreou chão nenhum que não fosse aquele pátio sujo de cimento e duvido que tenha tido uma carícia, um consolo da mulher que um dia o retirou do colo materno. Quando por ali passava gente ele era um simples cão perigoso porque era grande e forte e ladrava.
 A única relação de afecto que teve em toda a sua vida foi criada com um carpinteiro vizinho, que ali passava todos os dias de casa para o trabalho e do trabalho para casa. O homem, certo dia a caminho de casa, lembrou-se de lhe atirar com um resto de comida. E isto repetiu-se anos seguidos. Para Skyp, que fora o escolhido, o mais perfeito entre os irmãos, o grande momento da vida dele, o zénite transcendental, era quando o rapaz ali passava e lhe deitava um osso, um bocado de pão ou o que fosse. Por vezes o rapaz não levava nada e via o cão correr aos saltos até onde o cadeado permitia. Via o olhar contente do cão e ficava triste porque percebia a falta, a quebra do ritual.
E assim, ao longo de  quase treze anos, o rapaz procurou não faltar ao combinado. No últimos anos, quando já o pobre bicho definhava, o rapaz sofria. Sofria em silêncio porque eram vizinhos de uma aldeia de subúrbio. E os vizinhos das aldeias de subúrbio dão-se bem e não fazem revoluções. Os vizinhos zangam-se com coisas humanas, não com vidas de cães. Os vizinhos são capazes de observar atrocidades como esta, e de sofrer com elas, mas está-lhes vedado o instinto justiceiro porque talvez ainda não tenham bem presente a diferença entre um cão que foi "o escolhido" e um monte de tábuas que para ali ficou arrumado junto à parede que menos serventia tem. Tudo aquilo faz parte do mesmo e assim continuará a ser.

Certo dia, o rapaz passou frente à casa e não viu o cão. Parou por um instante e sentiu uma tristeza e uma alegria, sol e chuva ao mesmo tempo. Sorriu para ele próprio e seguiu o seu caminho. E noutro dia contou-me esta passagem com ar aliviado enquanto bebia uma cerveja.

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