Não, não vou por aí.
Eu pertenço a uma geração que começou a dar os primeiros passos na
primavera marcelista e aprendeu a ler em plena revolução. Depois, apanhou
professores desfasados dos manuais marxistas que lhes impuseram, até que um dia
vieram os retornados e os turras. Toda a gente tinha medo dos turras, os pretos
que haviam de vir para cá por causa das ex-colónias. Mas eram os retornados que
mais a gente temia. Dizia-se que vinham tantos e era preciso dar de comer àquela gente,
hordas de bem falantes da nossa língua, brancos bem penteados e com hálito a
coca-cola. Uma tribo assim tão conhecedora do mundo novo, experimentada em grandes estradas e outras empreitadas, estava a chegar e a pobre gente do velho império
ouvia nas missas o aconchego dos padres. Era preciso pedir ajuda à fé para bem entender esta invasão que nos ia tirar os empregos, o pão, as terras e
sabe-se lá mais quê.
E naquele tempo, as televisões eram uma para cada cinco casas, e os
jornais eram três ou quatro, e as vendas de vinho e as barbearias eram as redes
sociais onde tudo era falado e discutido e o medo e a incerteza
andavam errantes, de segunda a domingo, por entre tristonhos telejornais e a
rádio renascença que a todos acudia com canções pedidas e saudades em carne
viva. Saudades dos nossos portugueses que iam quase todos os dias para a França,
a Alemanha e outros sítios lá longe, onde se ganhava dinheiro para um dia
voltar e morrer em paz na terra amada, na pátria eterna, em Portugal.
Não, não vou por aí.
Hoje tudo é diferente, menos o medo. E a emigração. A viagem que
se faz, que não de comboio e mala de cartão mas sim de avião de baixo custo e i-pod, e a saudade que se
canta e o dinheiro que se vai buscar lá fora. A nossa sina. A sina de um povo
que desde o dia em que lhe mataram Viriato teve de se pôr a caminho porque daí
para cá a europa e o mundo só o quis explorar. Mais nada.
Fomos e viemos, vamos e vimos. Tocamos o mundo, seja onde for, e
assim será sempre.
Cá continua a haver de tudo. Desemprego, falência, injustiça,
pobreza, miséria. De tudo. E desassossego também. E medo e ignorância.
Espera-se outra vez que os senhores padres nos sosseguem nas missas e lêem-se os jornais todos, centos deles, e ouvem-se as
rádios todas e em todas as horas as noticias na televisão e os programas de
comentadores e o Facebook. A gigante venda de vinho, a grande barbearia do
nosso tempo, o Facebook, onde todos dizem qualquer coisa e onde todos comentam
o que é dito, onde fala o burro e zurra o cavalo iliterado e pacóvio. E o medo cresce porque não há sossego nas almas sãs da casta
gente. Que trabalha e tem casa para pagar, já sabemos, que tem filhos na escola, que tem a
mulher no desemprego e os pais doentes e a reforma é pequena e o país está
falido e as festas medievais é que são boas. E os refugiados, esses vilãos terroristas, que vão para onde quiserem, que não venham para cá.
Não, não vou por aí.
Não vou mesmo, garanto. Não vou alinhar com esse medo absurdo,
ignorante e hipócrita dos migrantes, hordas de gente a invadir o meu país. Não vou
estar de pau na mão à espera dessa gente mal vestida e assustada que disfarça a
sua índole maléfica, escondendo terroristas por debaixo das saias. E que ainda por cima é muçulmana! Não vou estender-lhes o dedo culpando-os da minha vida miserável. Dos erros que cometi, dos
políticos que elegi e da sociedade mesquinha, egoísta e cruel que ajudei a erguer.
Não, não vou por aí, Não vou alimentar os burros falantes, os ferrabrases . Vou antes agarrar-me com unhas e dentes à sanidade mental que me resta e me faz pensar nos meus amigos que emigraram, naqueles meus concidadãos que um dia tiveram de vir para cá e que se adaptaram aos nossos costumes e trabalham e vivem como eu, e finalmente nos que andam por esse mundo à procura de um rumo e podem ter de vir parar aqui e a quem, pela minha parte, juro-vos, hei-de olhar de frente e, na falta de mais alguma coisa, de certeza que lhes darei respeito e admiração, de certeza que lhes darei a minha mão.
Não, não vou por aí, Não vou alimentar os burros falantes, os ferrabrases . Vou antes agarrar-me com unhas e dentes à sanidade mental que me resta e me faz pensar nos meus amigos que emigraram, naqueles meus concidadãos que um dia tiveram de vir para cá e que se adaptaram aos nossos costumes e trabalham e vivem como eu, e finalmente nos que andam por esse mundo à procura de um rumo e podem ter de vir parar aqui e a quem, pela minha parte, juro-vos, hei-de olhar de frente e, na falta de mais alguma coisa, de certeza que lhes darei respeito e admiração, de certeza que lhes darei a minha mão.
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