terça-feira, 5 de abril de 2011

Estou lembrado duma coisa. Estar lembrado não é bem o mesmo que lembrei-me. Acho que não, que é diferente. Estar lembrado é uma coisa que nos vem à ideia, uma marca que nos está cá dentro e de tempos a tempos salta-nos cá para as praias do pensamento. Por isso digo, estou lembrado de quando era pequenino e tinha mais ou menos seis anos e nas manhãs de inverno vinha para a rua brincar num passeio largo feito de calçada portuguesa que existia e ainda existe no largo de Nossa Senhora de Fátima, em Vermoim Maia, mesmo em frente à porta da casa que eu habitava com os meus avós. De manhã cedo o passeio estava coberto com uma fina camada de geada e nós fazíamos ali umas patinadelas enfiados numas botas pesadas e velhas e às vezes engatavam-se-nos as biqueiras nas falhas dos paralelos e era cá cada tombo que meu Deus!
Depois, eu e o Zé Fernando, quase sem termos frio, cantávamos uma lenga-lenga inventada por nós e que começava sempre por "no tempo em que os animais falavam" e depois cada um de nós metia lá dentro um animal e largava a imaginação em busca de falas que tinham sempre qualquer coisa de "os bichos" de Torga, sem fazermos a mais pálida ideia de que isso existia, misturados com filmes de macacada, que era esse o nome por que tratávamos os filmes de banda desenhada americanos.
Anos mais tarde, creio que já na escola preparatória, tive o meu primeiro estou lembrado disto que hoje novamente estou lembrado, através das belas passagens que aflorei no livro "O Romance da Raposa", de Aquilino Ribeiro, uma história linda e soberba que nem sei se ainda mora nos programas escolares tão prenhes de critérios abrangentes e pragmáticos onde cabe cada vez menos aquilo que é nosso de ser nosso mesmo.

(Ah, como é bom de vez em quando estar lembrado!)
E depois vieram Os Bichos de Torga e Os Novos Contos da Montanha, e Trindade Coelho, e a Filha de Labão de Tomás da Fonseca. A filha de Labão, é um livro indispensável para qualquer pessoa que saiba ler. Palavra de honra! Li-o com tal paixão que gravei na mente que o livro se chamava "A Cotovia" (quem o leu saberá porquê) e muitos anos depois andei cismado nesse título e um dia, numa feira, dei de caras com a bela Cotovia dentro do Filha de Labão. E foi tão bom.
E pronto, era isto; desse tempo guardo um frio mais doce, um cheiro mais claro e uma luz mais calma. Estou lembrado muito bem desse frio, desse cheiro e dessa luz. Estou lembrado de quando fui menino e peço a Deus que nunca disso me deixe esquecer.

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