quinta-feira, 8 de abril de 2004

Páscoa ll

O Entrudo mal tinha passado e aquela gaveta velha, por baixo de uma outra que guarda os talheres desirmanados, já estava cheia de cascas de cebola muito castanhas.
- Quanto mais secas mais cor dão aos ovos, dizia a minha avó com toda a ciência que é coisa de avós. Os ovos cozidos eram a preciosidade gastronómica lá de casa, muito bem pintados por caulinas cascas de cebola, muito bem acondicionados na melhor travessa de loiça de Viana, cuidadosamente desembrulhada do traje que vestia desde a última consoada.
Naqueles domingos de Páscoa raramente chovia. O sol parecia sempre mais brilhante e o cheiro a erva-doce, aquele cheiro da erva que era colocada no chão, qual “tapete”, para receber o compasso deixava-me embriagado de contentamento e realização. O dia começava com a visita do meu padrinho. Aquele homem de ar imponente, com o meu nome inteirinho – Altino Torres Ferreira – aparecia lá em casa sempre impecavelmente vestido, mesmo no tempo em que vinha na sua “Sachs V5” de cinco velocidades, a rainha das motorizadas.
- A sua “bença” padrinho. Era a minha senha de acesso. Era o meu passaporte, “username” e “password” que me habilitavam logo a um pacote de amêndoas, grandes e coloridas, e a uma nota de cinquenta escudos. Aquela nota amarelada, e quase sempre novinha, estaria guardada há muito, pensava eu, com destino ao afilhado, ao menino russo e de cara sardenta.
Nota no bolso e meia dúzia de amêndoas na boca, era altura de receber o compasso. Aquela procissão impressionava. Havia sempre gente ilustre a comandar o ritual. Gente que eu via sempre de roupa velha e que entrava agora, na casa da avó, com as melhores roupas, de gravata a combinar e sapatos gastos mas impecavelmente brilhantes. O ritual de beijar o Cristo na cruz fascinava-me. Ajoelhava-me e, cheio de fé, dava um beijo numa cruz muito cromada onde jazia um Cristo de aspecto mágico e expressão melancólica. Depois recebia um santinho que guardava dentro dum livro qualquer.
Sabia eu que nesse dia de festa ia haver regueifa e um assado mais generoso. E os ovos claro.
Fartura para os mais velhos, já que eu andava com o sabor inquinado pelas amêndoas de tal maneira que só tinha boca para uma canja e pouco mais.
Pela tarde a Páscoa ia embora. Era tempo de mudar de roupa e correr para a “bouça do Marques”, e jogar aos índios e “cabóis”. Não que a Páscoa acabasse ali para mim, era apenas uma pausa. A Páscoa propriamente dita recomeçava na segunda-feira, dia maior na minha terra. Dia de ir à feira do Castelo.


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