sexta-feira, 18 de junho de 2004

coisas de nada

P estava particularmente falador. Tinha de se ausentar mas ainda arranjou tempo para mais uma cerveja. Falava-se de homossexualidade, de como vemos a coisa quando a plateia é composta por gente de trabalho, simples e sem aqueles tabus próprios de quem se preocupa muito com a imagem.
P é um daqueles tipos sem papas na língua, capaz de se desprender de qualquer moral, tendo como código de conduta a franqueza e a simplicidade da vida que leva. Por isso P ficou mais um bocado. Acendeu um cigarro e falou da sua experiência com homossexuais. Não os homossexuais giros e saídos do armário, cidadãos alinhados, que têm os seus namorados. P desafiou-nos a ouvirmos a sua história e de como aviou um “panilas” apenas e só pelo “ bago”.

Anos oitenta. A pasta era pouca

P trabalhava numa fábrica, em Gaia, e normalmente vinha de boleia. Certo dia, a boleia faltou e ele, sem delongas, atirou o dedo em riste para o meio da estrada, braço esticado, à espera de uma alma bondosa, disposta a ajudar. Um carro abranda e, em marcha quase fúnebre, pára uns metros adiante. P corre para a viatura e pergunta:
- Vai para os Carvalhos?
O homem demora um pouco a responder. Podia ir apenas para Espinho, ou para o Porto, pela ponte da Arrábida. Que sim, que passava lá.
P entrou no carro e, dada a pouca distância do percurso, trocaram conversas de ocasião. Em chegando aos Carvalhos, P informou, tranquilo:
- Olhe, eu saio já aqui.
O homem, solicito, inquiriu:
- Deixe estar. Eu tenho tempo e posso leva-lo a casa.
P já tinha percebido qualquer coisa naquele homem. P sempre foi um tipo perspicaz e concluiu em pensamento que estava perante um “rabicha”.
O homem desceu a estrada para a aldeia vizinha e P fez sinal para sair. Dirigiu-se para o lado contrário da estrada, simulando morar noutra banda da aldeia, evitando assim ser assediado, um dia destes, mesmo à porta de casa. O homem ficara ali, à coca por breves momentos, acabando por reiniciar a marcha, frustrado.
No dia seguinte, em faltando a habitual boleia, P volta a estender a mão e a mesma alma caridosa volta a parar o carro.
- Então? Por aqui? Entre. Atirou confiante.
P entrou e, a partir desse momento a conversa foi mais franca.
- E se fossemos tomar uma cerveja?
- Olhe, eu vou ser muito directo, atirou P, se tiver aí dez contos eu faço-lhe o serviço, mas primeiro passe para cá o dinheiro.
-Eu dez contos não tenho, mas tenho dois e quinhentos.
- Pode ser.
Lá foram os dois para a Senhora da Saúde, um parque situado no alto de um antigo castro onde mora uma igreja, rodeada de jardins difusos e arvoredo abundante.


P contou-nos isto com tamanha naturalidade, ênfase que só visto, e depois contou outras histórias que se lhe seguiram (“a pasta era pouca”). Eu ouvia e ria, em afinada orquestra com o resto do grupo. Pensei na espontaneidade com que P contava as suas experiências. Fumei o último cigarro, estava frio, e fui para casa. Pensei no blog, no raio do blog, e atirei-me a este texto.
P, se algum dia ler isto, que me perdoe por estar a servir-me da sua generosa autenticidade.

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