sexta-feira, 7 de maio de 2004

coisas de nada

Certo dia, andava eu a vender telefones para uma multinacional, no tempo em que ainda não havia telemóveis, e desloquei-me a Barcelos, onde me esperava o “fecho” de um importante negócio. Os empresários do Norte são muito conservadores e nestas coisas de vendas é imperativo nunca termos que pedir desculpa pelo atraso. De modo que ainda faltava cerca de uma hora para a reunião e eu já avistava a igreja matriz, muito arrumadinha entre os paralelos e o enorme lajedo, características daquela bela cidade à beira Cavado.

Acontece que, se por um lado temos a graça de controlarmos os esfíncteres, por outro, e quando o nervoso miudinho comanda a coisa, o intestino manda que se procure solução para a mais tranquila evacuação. De maneiras que o mesmo estabelecimento que me serviu o segundo café do dia também me forneceu acomodação para a nobre tarefa de dar sossego ao aperto. Quem anda nesta vida de vendedor sabe bem os cuidados necessários a ter quando andamos de casa de banho em casa de banho, ora a Norte ora a Sul, e eu habituei-me a forrar muito bem forradinho o rebordo de qualquer sanita acolhedora, com artes de bem trabalhar o papel higiénico. Há, alias, um sem número de tiques engraçados que nos encravam o comportamento. Estou a lembrar-me, a propósito, de um outro tique que manifestava, sempre que ia jantar a casa da minha querida sogra, e que me veio dar resposta àquele intrigante olhar “de rola” que ela me fazia persistentemente: sentava-me à mesa, pegava no prato limpíssimo e limpava-o invariavelmente, dando voltas e mais voltas com o guardanapo. Era automático, uma espécie de ritual.
De volta à casa de banho de Barcelos, e finda a matinal obra de arte, urgia pressa em sair dali. Cinto apertado, mãos lavadinhas e gravata ajustada, estava pronto a fechar a venda, agora aliviado e mais confiante.
A adjudicação – palavra caríssima aos chefes de venda –, resolveu-se rapidamente. Agora era tempo de conversar. Sendo eu muito conversador, herança trazida da minha avó materna, tudo me servia para linguarejar (um dia até citei José Régio – o “Cântico Negro” – a um cliente de Vila do Conde), de modos que o formalismo da coisa já tinha ardido fazia tempo. E em chegando a hora das despedidas, “mais uma vez parabéns pela preferência, “tive muito gosto”, e outros mimos, dirigia-me eu para a porta quando o meu cliente dá uma grande e bem sonora gargalhada. Ele acabara de ver um tipo de fato preto, a semear papel higiénico pelo chão. Uma cena digna do “charlot”. Percebi ali que não dei conta de que um enorme pedaço de papel higiénico ficara colado na minha perna direita.
A partir desse dia, fiquei com mais um tique: passar as mãos pelas coxas sempre que acabo de me servir de uma casa de banho pública.

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